Pesquisa testa enzina achada nas fezes de peixe-boi amazônico para produzir etanol de 2ª geração
18/11/2025
(Foto: Reprodução) 'Amazônia, Mãe da Ciência': enzima do peixe-boi pode gerar biocombustível
O segredo para uma nova alternativa na produção de biocombustíveis pode estar no intestino de um gigante das águas amazônicas: o peixe-boi-da-Amazônia. Isso porque enzimas encontradas nas fezes do maior herbívoro aquático da região são capazes de quebrar moléculas complexas de plantas e transformá-las em açúcares fermentáveis que são a base do etanol de segunda geração.
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A descoberta foi feita por pesquisadores do Centro Nacional de Pesquisa em Energia e Materiais (CNPEM), de Campinas (SP), em parceria com o Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa). Com a ajuda do superlaboratório Sirius, eles fizeram um mapeamento inédito de diversos micro-organismos do intestino do mamífero.
O estudo sugere que enzimas encontradas no peixe-boi podem ser eficazes para atuar na produção do etanol de segunda geração e também têm potencial para criar antibióticos e alimentos sem lactose. A pesquisa continua em fase de testes, dependendo dos resultados para avançar para próximas etapas de criação de protótipos e produção em escala industrial.
🔎O etanol de segunda geração (E2G) é um biocombustível feito a partir de resíduos agrícolas como bagaço e palha de cana-de-açúcar. Ao contrário do etanol comum, produzido a partir do caldo da cana, o E2G busca aproveitar integralmente a biomassa, reduzindo as emissões de carbono, tornando o processo mais sustentável e eficiente.
Nesta reportagem, você vai ver:
Como transformar plantas em energia?
Do intestino do peixe-boi ao superlaboratório Sirius
Mapeando o metagenoma do peixe-boi
Etanol mais limpo e a busca pelo resíduo zero
O perigo da caça ilegal
🌿Como transformar plantas em energia?
Pesquisadora Vera da Silva, do Inpa, examina peixes-boi em Manaus
Reprodução/EPTV
Essa foi a pergunta que as pesquisadoras fizeram para chegar ao peixe-boi como fonte de estudo. Depois de realizar um projeto pioneiro com capivaras, foi a vez de pesquisar o maior herbívoro aquático da região Amazônica.
O peixe-boi amazônico pode pesar até 420 quilos e comer cerca de 40 quilos de plantas por dia. Essas características fazem dele uma "máquina trituradora de biomassa verde", segundo a pesquisadora do Inpa Vera da Silva.
"Para sobreviver e tirar os nutrientes e energia das plantas, ele precisa das bactérias que estão no intestino dele. Investigando essas bactérias, nós conseguimos descobrir micro-organismos inéditos e novas enzimas que podem ser utilizadas, por exemplo, para a produção de etanol de segunda geração", conta a pesquisadora Gabriela Felix Persinoti, do CNPEM.
Digerir essas plantas é uma tarefa complexa. Daí a importância que o animal pode ter para a produção de biocombustível.
🔬Do intestino do peixe-boi ao superlaboratório Sirius
Vista aérea do laboratório Sirius, em Campinas
Reprodução/EPTV
Para realizar os estudos, os pesquisadores coletaram amostras de fezes de peixes-bois em tanques do Laboratório de Mamíferos Aquáticos, no Inpa, em Manaus (AM).
Lá estão animais que foram resgatados da caça ilegal e que passam por um processo de reabilitação para que sejam devolvidos ao ambiente natural.
🕝O peixe-boi pode ficar algum tempo fora d'água. Segundo os pesquisadores, o procedimento da coleta de fezes era feito neste momento, de forma não invasiva e preservando o bem-estar animal, que era mantido fora do alcance do sol, sem risco de prejuízo à sua pele.
De lá, as amostras foram encaminhadas ao laboratório do CNPEM, em Campinas, que conta com infraestrutura avançada incluindo o Sirius — maior acelerador de partículas síncroton da América Latina, que funciona como um super microscópio de raio-x — para mapear a estrutura molecular de enzimas presentes nos micro-organismos encontrados nas amostras, da forma mais detalhada possível.
"Isso é importante para nossas pesquisas porque permite que a gente consiga desenhar enzimas mais eficientes ou modificar essas enzimas de forma racional, pontual, para tentar deixá-las mais rápidas, ou alterar as condições de atuação dessas enzimas para atingir as condições industriais de aplicações reais mesmo", explica Persinoti.
Com o avanço dos estudos, o CNPEM conseguiu mapear geneticamente as enzimas de interesse de forma que não é mais preciso coletar novas amostras: os pesquisadores reproduzem as enzimas em laboratório, inserindo esse material genético em bactérias cultivadas em condições controladas.
🧬Mapeando o metagenoma do peixe-boi
Genoma microbiano de peixe-boi é mapeado por Gabriela Persoti, no CNPEM
Reprodução/EPTV
Segundo Persinoti, o projeto começou em 2021 e, desde então, mapeou o metagenoma microbiano do peixe-boi amazônico, ou seja, todas as bactérias e também os vírus encontrados nas amostras.
Para completar o estudo, em 2023, em parceria com a ONG Aquasis, o laboratório mapeou também o metagenoma microbiano do peixe-boi marinho, espécie encontrada no Nordeste brasileiro.
E os resultados impressionaram os pesquisadores: cerca de 50% das bactérias e 80% dos vírus encontrados não estavam presentes em nenhum banco de dados do mundo, diz a pesquisadora.
A pesquisa está em fase de caracterização das enzimas, mas já desperta interesse pelas possíveis aplicações. Além do etanol de segunda geração, os resultados podem abrir caminho para novas biotecnologias em saúde e alimentação.
"Agora que a gente está finalizando esse estudo e descobriu essas novas enzimas a gente pode, então, produzi-las em maior escala para chegar na sociedade mesmo, em aplicações, tanto no etanol de segunda geração, como na produção de alimentos sem lactose, ou até na produção de novos antibióticos, para resolver problemas do nosso dia a dia cotidiano", explica Persinoti.
🔬 Etanol mais limpo e a busca pelo 'resíduo zero'
O estudo faz parte de uma frente de pesquisa do CNPEM que busca tornar a produção de etanol de segunda geração mais eficiente e economicamebte viável, uma vez que a conversão das moléculas vegetais ainda é um dos gargalos do processo.
Se as enzimas inspiradas no peixe-boi mostrarem a mesma eficiência em laboratório, será possível reduzir custos industriais e ampliar a produção com menor impacto ambiental.
Há anos, o CNPEM vem atuando para desenvolver um processo que integre, do começo ao fim, a transformação de bagaço de cana-de-açúcar em etanol de segunda geração, buscando aproveitar todos os resíduos do processo, o avançando no conceito chamado "biorrefinarias de resíduo zero".
Sendo assim, o bagaço (que já é resíduo da primeira geração de etanol), passaria pelas seguintes etapas:
Pré-tratamento da biomassa: para "abrir" a estrutura da biomassa que naturalmente é resistente
Customização de coquetéis enzimáticos: a partir de técnicas de engenharia genética, são criadas 'misturas' de enzimas capazes de quebrar as moléculas vegetais em açúcares simples
Fermentação alcoólica: leveduras desenvolvidas no laboratório fermentam todos os açúcares liberados a partir da biomassa, produzindo etanol de segunda geração
Reutilização dos resíduos são reaproveitados para nutrição animal
Todo o processo é acompanhado por análises de sustentabilidade e viabilidade econômica, com foco em criar uma tecnologia nacional competitiva.
🐋 O perigo da caça ilegal à biodiversidade
Peixes-boi em tanque do Inpa, em Manaus
Reprodução/EPTV
O peixe-boi-da-Amazônia é uma espécie endêmica da bacia amazônica, ou seja, só é encontrada lá, sendo também a única espécie de peixe-boi do mundo encontrada em águas doces. Ele pode medir cerca de 2,5 metros.
É um animal dócil, protegido por leis ambientais, e desempenha papel essencial na manutenção dos ecossistemas aquáticos, pois ajuda a controlar o crescimento de plantas submersas e favorece a circulação de nutrientes, atuando ainda na dispersão de sementes.
“O peixe-boi ainda é usado como base de alimentação de subsistência em vários locais da Amazônia, mas também existe uma caça ilegal sobre esse animal. Ele é protegido por lei e deve ser protegido, porque foi muito caçado e a população foi muito reduzida. Essa recuperação é lenta e é uma espécie frágil do ponto de vista ecossistêmico”, explica Vera da Silva, pesquisadora do Inpa.
🚨 A Lei de Crimes Ambientais proíbe matar, perseguir, caçar, apanhar ou utilizar animais da fauna silvestre. A pena é maior se a espécie abatida for ameaçada.
De acordo com Vera, a COP30 é um momento importante para chamar a atenção do mundo sobre o Brasil e sobre os conhecimentos que podem ser produzidos a partir da conservação da floresta amazônica.
"A ciência pode transformar a vida das pessoas e a gente está mostrando com esse estudo que a natureza pode nos ensinar também e o quanto é importante a gente conservá-la para que as novas e as futuras gerações também tenham acesso a essas soluções e a essas informações", destaca Persinoti.
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